minha voz eu atiro ao precipício
ela desce ao fundo do buraco
feito uma onda.
ela encontra, após andar muito,
um chão de flores mortas.
ela retorna a mim
como um eco
que não é mais meu,
pelo contrário:
o abismo tem a tua voz
e, como tu, pede que eu
pule.
apoético
sem sono & sem sol
sábado, 29 de novembro de 2025
quinta-feira, 30 de outubro de 2025
duelo
costuras com a língua
uma ferida no céu
da minha boca
forjo com a minha faca
uma mísera palavra
em teu ouvido
celas com os lábios
um silêncio no véu
da minha boca
corto com a minha adaga
outra ferida na paz
do teu ouvido
sexta-feira, 10 de outubro de 2025
escrever um pequeno poema
um poema que caiba no corpo
de uma formiga
um poema que tenha a boquinha
de um cupim
um poema que faça um buraquinho
nos livros das suas estante
(um poema que transforme
todos os teus outros livros de poesia
em pó)
um poema pequeno como um
átomo
um poema que, ao abrir,
cause uma explosão
que destrua o mundo.
sexta-feira, 12 de setembro de 2025
vida que segue, como dizias
mas eu pergunto: seguir como?
após pegar todas as sinaleiras abertas
após todos os sinais verdes
que nos fizeram imaginar que nunca mais
precisaríamos parar
após deixar para trás os cães de rua
que esperam para atravessar na faixa
de pedestres
após atropelar toda as inibições
e passar as rodas, à toda velocidade,
pelos nossos mortos (e mortas)
até que eles não fossem mais do que uma mancha
no passado
após nos acostumarmos à vista
que voa desesperada pela janela
todas as pessoas esticadas num único borrão
todas, sem excessão
(só eu e tu não)
após esse vento no rosto e esta pressa
esta pressa de chegar
esta pressa de imaginar que estamos chegando
não importa onde
esta pressa que virou a certeza de que algo
ou qualquer coisa
nos esperava logo adiante --
eu te pergunto: tudo bem, vida que segue,
mas seguir como?
sábado, 9 de agosto de 2025
assim meio a vagar
entre uma coisa e outra
assim meio a chegar
em lugar nenhum
assim meio a ter pressa
de dormir, mas não de acordar
assim meio querendo
o sonho, mais do que a vida
assim meio a dividir
duas metades, mal repartidas
assim meio a contar
os cílios de um olho aberto
assim meio a rugir
feito um leão, mas ser um gato
assim meio a pedir
mas em segredo
assim meio a lutar
já desistindo
assim meio ao luar
mas amanhecendo
assim meio a furtar
um ar da boca
assim meio a impedir
o próximo momento
assim meio a cortar
a língua nos dentes
assim meio a gerir
uma decadência
assim meio a partir
mas ir ficando
assim meio a ficar
feito um adeus.
sexta-feira, 8 de agosto de 2025
esta noite me persegue
como uma sombra -
esta noite também me antecipa
como uma descoberta;
(chega até mim como um navio pirata
depois me invade como uma praia
deserta)
esta noite cerca-me e me extingue
como a uma chama;
(de sua boca sopra um leve sussurro
que me escurece -
não é nada demais:
uma lembrança)
esta noite vai durar mil e um anos
como uma canção de ninar
e começa agora
como uma criança.
segunda-feira, 9 de junho de 2025
por causa do vento
mastigamos areia -
o sal pousou em nossas bocas
para não precisarmos
beber do mar.
por causa da areia
nossos pés afundavam
e porque nos arrastávamos lentamente
tivemos a chance de ficar em silêncio
muito tempo
ouvindo apenas o trêmulo
calor do teu corpo
porque irias embora
após a última música
te levei para ouvir o minueto
das ondas
"vamos nos despedir quando
o mar fizer silêncio",
eu disse
"eu não vou ficar para sempre",
tu disseste
e eu respondi "shh --
estás perdendo a melhor parte"
naquela noite
nossas preocupações cabiam
numa concha de berbigão
porque o mundo cabe
numa concha de berbigão
depois o milagre:
o primeiro fio do sol
alisou o horizonte
e calou o mar
no espelho que sobrou
afundaste para nunca mais
voltar..
sexta-feira, 16 de maio de 2025
duas nuvenzinhas vermelhas
toda semana corro descalço
pelos espinhos d'um dia
útil
até o baixo cume d'uma
sexta-feira -
de pés vermelhos me
lanço
do desfiladeiro;
um suicido sobre teus lábios
encarnados,
cor-de-sangue -
depois durmo
até me cansar,
como s'eu fosse a sombra
d'um pequeno
beijo
esquecido sobre
uma nuvem rubra.
terça-feira, 1 de abril de 2025
certas coisas
só aceitaria te dizer aos
sussurros
à beira do mar
durante uma tempestade
para que tu confunda as palavras
com o vento,
ou com as ondas
explodindo contra as
pedras,
palavras que eu não
gostaria que tu
ouviste
mas que eu gostaria de
pendurar nos teus cabelos
como gotas
d'água
ou derrubar na tua língua
como uma pedra
de sal
ou que caíssem e fechassem os teus
olhos como
um beijo.