terça-feira, 24 de maio de 2016

ainda que eu pudesse rendê-la
no reflexo de uma gota de chuva
que não explodisse no chão, e
jogasse sobre o cimento a imagem
dela em estilhaços; ainda que
a fragilidade dela não fosse, como
dizer?, tão frágil, e pelo chão ela
reinasse como um lençol de água
para embebedar a segunda-feira;
ainda que eu fosse imperador para
legislar os dias de chuva como dias
de casa, e atasse-a a este sofá,
que tão bem conhece a impressão
do corpo dela, e esparramássemos
úmidos como o orvalho destes móveis,
e pingássemos - a covardia na carne
aparecendo - uma preguiça mercurial
tão invencível que só podia ser divina;
ainda que o veneno da madrugada
tornasse o seu corpo espuma, e o riso
vapor, e a forma delicada, aparecida,
não permitisse mais o toque, mas só
um apalpar da atmosfera que contorna
a sua presença; ainda que só pudesse
beijar o que sublima pelos azulejos
após um banho quente, ou na tampa
duma panela cozendo minhas entranhas;
ainda que só pudesse me espraiar e
abrir um livro, de pernas cruzadas,
vendo ela dar a graça no suor de uma
cerveja, e ouvir a voz dela nas ondas
pelas praias vazias do inverno, eu, feliz,
aceitaria ser testemunha, e o prisioneiro,
do seu vai-e-vem

terça-feira, 17 de maio de 2016

continuo caindo em desgraça
continuo a ter no boca a casca
da pitomba explodida, vazia
da semente e da carne branca
translúcida que m'enche a boca
d'azedume e fiapo, raspando-a
nos dentes, até não ter sabor
e perder a fruta macia, que mora
perfeita, úmida (como teus olhos)
nesse envólucro amarelo e sujo
que um dia deu numa árvore
nordestina, pra chegar e'minha
boca e a acidez dela me comer
enquanto a como, e enquanto a
como, e enquanto a como, e en
quanto a como e penso em como
as pessoas viajarem as trouxeram
até mim e enquanto a como (e
enquanto a como) eu penso se
será eu que acabarei co'as pitombas,
ou as pitombas é que acabarão comigo

quarta-feira, 4 de maio de 2016

todas as coisas que se movem
o tempo inteiro: a grama que
revela a vida do vento, a água
oculta que navega as folhas secas -
embarcações furadas do nascer
d'outono - naufragando na boca
do inverno, c'o frio chegando
furioso nos pêlos dos gatos que
s'embraquecem, as patinhas sem
luvas que eles esquentam contr'as
nossas costas nuas fora das cobertas.
o sol empalidece, também o calor
tem os lábios rachados, e beija-nos
co' essa luz dourada que nos sufoca
sem misericórdia; não há canção
que nos aqueça, voz de pássaro
noturno, ou coração de jardim e flor
em que escondamos o que o verão
tinha feito pacífico, felicidade sem
pressa; tudo está às beiras de secar
sob o céu cinza, s'esconder entre
as nuvens se arrastando no horizonte
e desaparecer -- menos você, que
é parte delírio, e não se congela.