segunda-feira, 29 de julho de 2019

quando de uma hora passada
um relógio sem ponteiros
que assinala apenas com as engrenagens
caindo em movimento metalicamente
o passado dos minutos, ainda
com a teimosia de marcar o tempo
com o som, se não com os olhos
e eu, que evito o relógio, e por
isso não encaro os ponteiros
com a angústia de que eles me atravessem
sou atravessado por um outro tempo
que eu tento evitar

viro vítima de uma transubstanciação
do passado, a força interna que molda
o âmago de volta a uma forma que passou
com o tempo, que se perdeu a esmo
no futuro e da qual não sinto falta,
mas a quem tenho a responsabilidade de responder
pela esperança não concretizada
no homem que me tornei a seguir.

não tenho arrependimentos, mas tenho
que encarar, potencial morto, que não,
não era o gênio que agora vejo que nunca fui
e, muito mais do que isso, não fui também
senão um fracasso, que por muito tempo
esteve apenas no meu caminho.
quando de uma hora passada lembro ainda
a forma apaixonada por tudo que tanto
se protegeu do mundo, e que o mundo alcançou
sem maldade, mas também sem se importar
e digo-a: não escrevo mais, não há secretamente
um livro em mim, nem dois livros, nem uma carreira
literária, não há sequer mais o hábito de sentar
no escuro e escrever ouvindo música, e inclusive
não há mais as frases em mensagem aos amigos
que também não mantive.

peço desculpas por não
ter jogado fora o relógio
e impedi-lo, ao menos, de
me torturar dessa maneira
que é o último refúgio que
tenho, o último cuidado que
me guardo, porque todo
o resto me esvaziou de uma
maneira que, eu imagino,
nem a morte esvaziará.

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