quinta-feira, 26 de maio de 2022

(para dona néia)


o luto revela segredos
sobre as palavras.
as palavras não usam
camisas de linho,
não têm redemoinhos
no cabelo (como o do
meu pai) [como o meu]
as palavras não fazem
batata-frita para os netos
não passam pelo canteiro
de rosas para dar tchau
com as mãos enrugadas,
as mãos que bordam,
que fritam batatas,
que apontam o lugar na mesa
que é o lugar que ela decidiu
em que cada um se sentaria
para articular a harmonia
do almoço.

o que as palavras fazem
é mostrar onde está a dor
é achar na gente um novo
lugar onde podemos sentir
uma coisa nova.
elas cavam a dor, cada
vez mais funda
"ela descansou"
"se foi", "faleceu"
"morreu"
palavras usadas para tatear
pouco a pouco
a dor real, além da conta
delas, dessas letras
assim enfileiradas
que podem ser as mais lindas
as melhores palavras
(como "vó")
mas que não dão conta de que nessas horas
o amor
que está lá
que sempre esteve
parece estar indo numa única direção
e não sentir ele voltar
enche a gente de vontade
de ir junto com ele.

terça-feira, 10 de maio de 2022

eu-maré
dorso do mar
flutuo
berço do mar
mergulho
beiço do mar
durmo
beira do mar
aço
dentro do mar
águo

quarta-feira, 4 de maio de 2022

vieste primeiro do visco uterino
de onde te gerastes cu à fora.
primazia a merda, qu'à boca flora
teu cancro interior de intestino.

ao avesso, já vens mais bela
secreta os olhos negros de comida;
a face rubra - vermelha - remida -
descansa no fervor dessa panela.

nosso este amor, a brasa fumegante,
escalda menos qu'essa paixão ante
às cinzas do que não era imortal.

n'água em vapor, desfaz-te ao nu:
lenta e liquefeita - boia o teu cu -
me embebo-te tua sopa primordial.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

aos secos olhos revela-se a mudança
desse nada de horizonte inacabado,
nos monstros do céu já precipitado
um casto temporal d'água que avança.

o corpo umedecendo, primeir'os olhos,
à baixoventre co'a chama azul do fogo
fátuo: lambe-me os pelos, num afago,
que, da garganta, liberta-me os arrolhos.

à terra encurva o fio d'onde se prende
a volúpia de algodão que me ascende.
deitando em minha língua a tenra uva

desafia-me com os dentes à ação bruta:
ao violar-te a carne fresca da tua fruta,
me ajunto-te minhas águas à da chuva.

domingo, 1 de maio de 2022

me lembro de ti
e me traio.
abro mão de tudo o que
tenho de bonito
de vaidade, as duas ou três
coisas que, no espelho,
não me dão asco.
soo como adolescente
do pior tipo, do tipo
romântico, do tipo
que encerrei em beijos
frios no ônibus para o
shopping, em mensagens
que se anunciavam na
interferência dos auto-
falantes, em poemas de
amor que não eram nem
bons poemas, nem de
amor -- como este aqui
também não é.

mas: eu me lembro, e
o poeta tem que sair de
cena, e sai pedindo
licença, em disparada
deixa-me, diz que eu não
assine, é melhor eu não assinar!
não sou eu, é o que ele diz,
e não é, não quando eu
me lembro
de te olhar, do teu rosto
tu minha, dizendo que era
minha, tu dando a entender
(nunca falando -- também não
tinhas o poeta em ti nessas
horas) que eu era, então,
o amor da tua vida
e eu me lembro disso, e
hoje tudo que eu penso é
se era esse todo o amor
que tu tinha pra dar, se era
esse o paroxismo da tua paixão
se isso era o máximo,
o que definia tua vida de amor --
talvez tenham te faltado os beijos
frios no ônibus;
talvez tenham me sobrado
os poemas que não
eram de amor.